Tesoura, Cabelo, Vingança. As Novas Dalilas e a Fúria Necessária.

Ana Martins
4 min readOct 6, 2022

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Lucas Van Leyden, The Power of Women- Sansom and Delilah

A tesoura é um símbolo poderoso.

Recordo-me bem da tesoura que a mulher do médico, personagem principal do livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, pendura na parede.

A mulher do médico não quer usar a tesoura. Evita descer ao nível de selvajaria dos opressores cegos. Tenta manter-se à tona de água no meio da animalidade. Procura agir de forma civilizada, ajudando como pode. Vai-se contendo. E a tesoura permanece suspensa no prego, sem dedos que lhe entrem pelos olhos sem pálpebras, assimétricos.

No entanto, a mulher do médico vê. E, como toda a gente que vê, acaba por ver demasiado. A ideia de vingança entra-lhe pelos olhos. Cega de raiva, pega na tesoura e vai enterrá-la no peito de um dos opressores cegos, habituado a violar, maltratar e matar mulheres.

Desde então, em todas as casas que habito, mantenho sempre uma tesoura a baloiçar numa parede. Em nome da fúria necessária.

Mas divago. Voltando à narrativa de Saramago, a grande questão não é ver ou não ver. O que é central no romance é a queda: a descida vertiginosa para a animalidade cá dentro.

Porém, aos olhos da leitora perplexa que sou, o uso que a mulher do médico faz da tesoura vai além de expor a cegueira de um mundo ocidental supostamente iluminado. O objeto cortante, responsável pela grande metamorfose — de mulher racional a mulher animalesca — tem sobretudo o dom de abrir caminho pelo tecido (narrativo ou não) até embater na bainha da fúria feminina.

Ora, todas sabemos como as bainhas são importantes.

Tudo isto para dizer que, um dia, acordei para a grande improbabilidade de, no Irão, e um pouco por todo o lado, se ter começado a imitar o gesto da mulher do médico. Uma onda de mulheres empunhando tesouras, mas desta vez virando-as para si próprias, num gesto traiçoeiro, perigoso, desleal e vulpino. Como Dalilas enfrentando Sansões pessoais, elas manipulam tesouras perante as câmaras.

A história bíblica de Sansão e Dalila, que também envolve tesouras e cabelo, ensina-nos que, após a traição de Dalila, o homem viril, simbolicamente castrado, perde não só a força, mas também a visão. Da mesma forma, as novas Dalilas reconhecem nos próprios cabelos o motor da virilidade masculina, e por isso não hesitam. A imposição dos cabelos longos esconde o segredo da sua opressão. O mesmo acontece com a imposição do hijab. Obrigadas a viver debaixo do véu, as mulheres não só não deixam ver, mas também deixam de poder ver, o próprio cabelo. Trata-se da imposição de uma forma de cegueira parcial. Deixam de poder ver uma parte de si, ao longo de grande parte do dia.

No meio de tudo isto, quem não reconhece o barulho de uma tesoura a avançar? Trata-se de um gesto que até de olhos fechados se cumpre. É esta a estratégia: obrigar a Polícia da Moralidade iraniana a ver o cabelo, e depois a vê-lo desaparecer.

Já em 1922 se sabia que, contrariamente ao que pensava Sansão, o poder se ganha cortando o cabelo. Há cem anos atrás, Victor Margueritte escrevia:

“Once Delilah emasculated Samson by cutting his hair. Today, she believes she can make herself virile by cutting hers.” (Victor Margueritte, La Garçonne)

Sim, deixar de ver é um castigo. Mas ver também o pode ser. Que o diga a mulher do médico. O (des)aparecimento, ao vivo, de um símbolo da sexualidade feminina que se quer escondido a todo o custo, já que o cabelo das mulheres é o que supostamente leva os homens a pecar, faz-me pensar no aparecimento das mamas despidas das ativistas Femen. No fundo, trata-se do mesmo mecanismo: uma espécie de banho frio mascarado de sauna que contribui para redirecionar uma certa forma patriarcal de ver certas partes do corpo feminino até à data controladas pelo olho que tudo vê, pode e manda.

É claro que, nesta história, nem toda a gente corta/mostra da mesma forma. Há quem corte todo um rabo de cavalo e o espalhe sobre o caixão de um familiar. Há quem corte uma modesta madeixa no sofá de um arrondissement de Paris, deitando-a depois no caixote do lixo. Há quem escreva sobre o Irão citando emails de compatriotas em luta. E há quem o faça citando uma história bíblica, um romance português e um grupo ucraniano de ativistas, como eu.

No mês dos Nóbeis, pergunto-me: que diria Saramago de tudo isto? Ou melhor, o que faria a mulher do médico no Irão? Isto porque, como sabemos, a mulher do médico não tem quem a veja, e desse modo vai-se tornando cada vez mais cega:

“cada vez irei vendo menos, mesmo que não perca a vista tornar-me-ei mais e mais cega cada dia porque não terei quem me veja” (302, Ensaio sobre a Cegueira)

Em terra de cegos, o esforço para nos vermos a todas é o mais tenebroso, e o mais inglório. A verdade é que ainda não sabemos como escrever sobre a opressão de género sem nos revelarmos, afinal, opressoras. Esta é, sem sombra de dúvida, uma das lições menos aprendidas do feminismo. Já o diziam as Três Marias, também elas rainhas em terra de cegos.

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Ana Martins
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Written by Ana Martins

Researcher | Writer | Mother of two | Author of Magic Stones and Flying Snakes https://www.peterlang.com/document/1052524

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