Diz-me por quem te enlutas, dir-te-ei pelo que lutas.

Ana Martins
3 min readMar 21

O corpo de Rui Nabeiro, agora dentro do cemitério, e por isso já inteiramente dentro da História, exemplifica melhor que ninguém a unidade normativa e patriarcal de um país inteiro.

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Perdoem-me enveredar por este exercício tétrico, mas a morte do empresário Rui Nabeiro fez-me pensar em corpos e cemitérios.

É que, contrariamente ao que se possa pensar, não é nos passadiços secos do nosso verão turístico nem nas tijoleiras frias do nosso inverno doméstico que encontramos o cerne da questão. É nos cemitérios de mármores sujos que melhor nos guardamos, por entre anjos comovidos e epitáfios desgastados. É aí, ou a caminhar lentamente para aí, para esse palco desleixadamente português de campas, lajes e loisas, cruzes e flores de plástico, que vem ao de cima o que realmente nos (co)move: a vontade unânime de nos unirmos num xi-coração apertado à volta de um patriarca milionário.

Confesso que fui apanhada de surpresa pela forma como este dia dos Pais foi sendo tomado pelo poder centrifugante do poder económico, e como este poder foi ganhando força com a ajuda de palavras como “império” e “café”, tão grávidas de sentidos históricos, não obstante atuais planos empresariais de sustentabilidade, e como estas palavras foram sendo coradas ao sol bondoso e sem limites do patriarca, que também era, dizem-nos repetidamente, um homem irrepetível, superior, de porte inteiro, humilde e generoso, bem-feitor, “pai e avô de muitos portugueses,” um santo que pagava próteses dentárias e “punha os dentes à gente.”

Confesso que a narração da vida e morte do construtor do “império” do café Delta, aplaudido durante mais de 10 minutos por trabalhadores em lágrimas, me apanhou de surpresa. Como quando o meu filho está ao meu colo e me acerta no estômago sem querer. Foi o que esta coesão nacional em torno do poder económico do empresário de Campo Maior me lembrou: um pequeníssimo murro sem querer. Uma coisa mínima, mas geradora de um certo mal estar.

Demorei alguns dias a perceber de onde vinha o mal estar. O corpo de Rui Nabeiro, agora dentro do cemitério, e por isso já inteiramente dentro da História, exemplifica melhor que ninguém a unidade normativa e patriarcal de um país inteiro.

Ana Martins

Researcher | Writer | Mother of two | Author of Magic Stones and Flying Snakes https://www.peterlang.com/document/1052524