Diz-me por quem te enlutas, dir-te-ei pelo que lutas.
O corpo de Rui Nabeiro, agora dentro do cemitério, e por isso já inteiramente dentro da História, exemplifica melhor que ninguém a unidade normativa e patriarcal de um país inteiro.
Perdoem-me enveredar por este exercício tétrico, mas a morte do empresário Rui Nabeiro fez-me pensar em corpos e cemitérios.
É que, contrariamente ao que se possa pensar, não é nos passadiços secos do nosso verão turístico nem nas tijoleiras frias do nosso inverno doméstico que encontramos o cerne da questão. É nos cemitérios de mármores sujos que melhor nos guardamos, por entre anjos comovidos e epitáfios desgastados. É aí, ou a caminhar lentamente para aí, para esse palco desleixadamente português de campas, lajes e loisas, cruzes e flores de plástico, que vem ao de cima o que realmente nos (co)move: a vontade unânime de nos unirmos num xi-coração apertado à volta de um patriarca milionário.
Confesso que fui apanhada de surpresa pela forma como este dia dos Pais foi sendo tomado pelo poder centrifugante do poder económico, e como este poder foi ganhando força com a ajuda de palavras como “império” e “café”, tão grávidas de sentidos históricos, não obstante atuais planos empresariais de sustentabilidade, e como estas palavras foram sendo coradas ao sol bondoso e sem limites do patriarca, que também era, dizem-nos repetidamente, um homem irrepetível, superior, de porte inteiro, humilde e generoso, bem-feitor, “pai e avô de muitos portugueses,” um santo que pagava próteses dentárias e “punha os dentes à gente.”
Confesso que a narração da vida e morte do construtor do “império” do café Delta, aplaudido durante mais de 10 minutos por trabalhadores em lágrimas, me apanhou de surpresa. Como quando o meu filho está ao meu colo e me acerta no estômago sem querer. Foi o que esta coesão nacional em torno do poder económico do empresário de Campo Maior me lembrou: um pequeníssimo murro sem querer. Uma coisa mínima, mas geradora de um certo mal estar.
Demorei alguns dias a perceber de onde vinha o mal estar. O corpo de Rui Nabeiro, agora dentro do cemitério, e por isso já inteiramente dentro da História, exemplifica melhor que ninguém a unidade normativa e patriarcal de um país inteiro.
Já o mesmo não se pode dizer de outros corpos, também eles encerrados em cemitérios, mas para sempre deslocados da História. Perdoem-me a desfaçatez, hoje deu-me para desenterrar mortos. Mas a verdade é que o cortejo fúnebre do Comendador me fez pensar noutro corpo, cuja morte ainda me dói. Falo do corpo de uma poeta galardoada internacionalmente, cujo corpo foi velado, é verdade, pelo Presidente da República, mas apenas velado, já que ao funeral foi só o Secretário de Estado do Ensino Superior (o Primeiro Ministro lançou um tweet). Comendadora também ela, é verdade, mas com a diferença de ser póstuma. Milionária, é certo, mas de palavras e afetos. E nunca matriarca. Plantadora, sim, de heranças literárias nas cabeças não primogénitas de quem a lia e com ela aprendia.
Aquando da sua morte, Marcelo Rebelo de Sousa descreveu a sua escrita como tendo “uma certa toada.” Já António Costa considerou que a sua poesia “concilia o trivial com uma elevada erudição.” Parcas palavras sobre a obra de uma autora que alcançara a maior distinção para a poesia no espaço literário ibero-americano (Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana). Não foi, portanto, digna de uma fração da atenção que agora é prestada ao empresário de sucesso, cujo funeral foi presenciado pelos três mosqueteiros (Presidente da República, Primeiro Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros), e agraciado pela presença de Carminho e o Coro da Gulbenkian.
Facilmente se conclui que hoje, mais que ontem, a identidade nacional é masculina e heterosexual. Para não dizer branca.
Já em 1938, Virginia Woolf escrevia: “[a]s a woman I have no country. As a woman I want no country. As a woman my country is the whole world.” Se aqui estivesses, querida Ana Luísa, poderias falar-nos, na tua voz rouca, sobre as linhas com que se cose este exílio interno.
Nós ouvir-te-íamos, extasiadas.