Avenida 25 de Abril: endereço pessoal

Ana Martins
4 min readApr 24, 2024

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A Avenida 25 de Abril foi uma autêntica escola. Foi lá que nos formámos no receio e na submissão.

Cravos no chão das nossas salas, por Ana Martins.

Quando éramos pequenas, os nossos pais mudaram-se para apartamentos situados na Avenida 25 de Abril, em vilas situadas no coração de Portugal, a duzentos quilómetros de Lisboa, ou mais. Foi assim que crescemos familiarizadas com a expressão 25 de Abril, mesmo antes de sabermos o que significava. 25 de abril era onde vivíamos. Era o nosso endereço.

Situada na parte nova das nossas vilas, a Avenida 25 de Abril era uma via importante e relativamente larga que ia dar às escolas, sendo frequentada por educadores, pais, jovens e crianças. A nomeação não terá sido acidental, já que a rua conduzia, literal e simbolicamente, ao futuro. Percorremo-la muitas vezes, a caminho da escola e de volta ao nosso endereço, de várias formas: a pé, de carro, de bicicleta, de patins, de skate, para cima e para baixo, com e sem livros, sozinhas e acompanhadas, a sorrir e a experimentar penteados, a morrer de vergonha, a apaixonar-nos loucamente. Nós éramos o futuro e o futuro movia-se, como sempre acontece, sem saber que o faz no tecido geográfico da História.

Lá no cimo da Avenida, nas salas de aula, líamos Júlio Dinis, Sophia e Alice Vieira. Cá em baixo, junto ao nosso quarto, a Avenida avançava pelos anos 80, ultrapassando-nos. Nós, meninas brancas, aprendíamos a amanhar sonhos, a pôr a mesa, a fazer a cama, a cultivar medos, sobretudo dos ciganos e dos negros, do pessoal do circo e dos estrangeiros. Testemunhávamos os irmãos mais novos que mexiam nos computadores dos vizinhos como se tivessem nascido programados. Nós escolhíamos outros ecrãs e seguíamos por eles, equipadas para todo o sempre com a imagem do vestido-balão da Princesa Diana.

Nessa altura, fazíamos parte da CEE e tínhamos mudado de escola. Já apelidávamos um professor de monhé, já dizíamos, por dá cá aquela palha, não sejas semítico, sabendo mais ou menos o que isso queria dizer, embora não conseguíssemos explicar por palavras nossas. Líamos Camões, Eça e Pessoa, mas, por mais que corrêssemos, só chegávamos ao 25 de Abril se saltássemos por cima da Guerra Colonial. Quando o verão chegava, dávamos meia volta e fazíamos marcha atrás até embatermos na eterna linha de partida que eram os Descobrimentos. Lá fora, a Avenida 25 de Abril avançava pelos anos 90, rumo aos oceanos da Expo.

Tinham-nos dito que a libertação fora amena, e a nós não nos custava nada imaginá-la assim, ao estilo das caravelas que, tendo demorado a chegar, sempre chegavam, mesmo quando se perdiam. Nós sabíamo-lo. Algo no leite materno nos preparava para saber desta forma. Tínhamos aprendido a ouvir falar da Revolução sem nos magoarmos com as frases que misturavam mulheres com flores, flores com armas, armas e flores com mulheres e crianças a pegar nas flores.

Mesmo assim, continuávamos, tal como as nossas mães, a fazer distinções importantes. Sabíamos distinguir uma mulher na rua de uma mulher da rua, e sobretudo, uma Barbie de uma boneca da Nazaré. Sabíamos quando baixar o olhar e quando o levantar. Sabíamos ignorar apalpanços e comentários não solicitados. Sabíamos aceitar operações de patrulha. Sabíamos, sobretudo, correr. Correr muito. Correr pelas nossas vidas. Sabíamos muito bem o que podíamos e não podíamos fazer na rua liricamente nomeada onde vivíamos. Esta tinha sido a primeira lição das filhas do milagre ameno.

A Avenida 25 de Abril avançava pelo novo milénio e nós mudávamos de rua e de cidade. Víamos o Sex and the City agarradas a botijas de água quente, depilávamos muito as sobrancelhas com a pinça, no aconchego das mansardas, como quem faz espaço para palavras novas que haveriam de se colar aos nossos olhos nas madrugadas das noites de Coimbra. E líamos cada vez mais. Quanto mais líamos, mais nos distanciávamos. Era à distância que as estruturas da nossa Avenida melhor se viam.

Por isso mudávamos de país e líamos livros que antes desconhecíamos. Descobríamos, por exemplo, a noiva feminista do Parque Eduardo VII. Tinham-na deixado passar, com o seu véu e a sua flor de laranjeira, e ela atravessara, incólume, a Avenida do novo discurso democrático, no Parque Eduardo VII. E agora que ela ganhava o devido lugar na nossa consciência, percebíamos — demasiado tarde — que ela evocava uma linhagem de noivas nacionais, da qual fazíamos parte. Já esposas, seguíamos o fio condutor entre nós, a noiva feminista e uma outra jovem ‘pura’, mais antiga, cuja presença tinha sido permitida nas ruas de uma outra Revolução, também ela ambientada em Lisboa, e que teria levado à proclamação da Primeira República, a 3 de outubro de 1910.

Nós já tínhamos visto a litografia de Cândido da Silva, lembrávamo-nos sobretudo do vestido rasgado com o pénis grafitado nos seios, no muro das nossas escolas. Mas entre ver e saber havia uma rua, por vezes longa e ladeada de homens, que era preciso percorrer. Olhávamos para as nossas vidas de mãos na cabeça. E, procurando salvar as nossas filhas, mudávamo-nos para outras avenidas, mais azinhagas, onde plantávamos cravos no chão das nossas salas.

Para que crescessem longe das calçadas, a partir de dentro.

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Ana Martins
Ana Martins

Written by Ana Martins

Researcher | Writer | Mother of two | Author of Magic Stones and Flying Snakes https://www.peterlang.com/document/1052524

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